ATENÇÃO: Esta coluna contém temas sensíveis, ficando a critério do leitor de continuar a ler.

Por: CE Rodrigues
“Aceito que me me traia, desde que não haja sentimentos.”
Essa frase, dita com naturalidade por uma jovem japonesa em uma entrevista de rua sobre infidelidade, me deixou simplesmente embasbacado. Não por estar ligado à cultura de um país que admiro profundamente, mas porque escancara algo mais amplo, mais profundo, mais universal: a erosão do afeto em tempos onde amar virou um risco e o corpo, um território banalizado.
No vídeo em questão, exibido em um canal no YouTube cujo nome não me lembro, várias mulheres e homens eram questionados sobre o que fariam caso fossem traídos. E, para meu espanto, muitas das respostas giravam em torno de uma suposta aceitação: desde que o outro “não sentisse nada” durante o ato. Como se fosse possível trair só com a pele, e não com a alma.
Essa lógica, vendida como “madura, livre e moderna”, me parece, na verdade, uma tentativa desesperada de controlar a dor com racionalizações. Mas há coisas que o coração sente antes mesmo que a mente compreenda. E há limites que, uma vez ultrapassados, nos deixam emocionalmente empobrecidos.
Como aceitar que o corpo não sente? Que o toque é neutro? Que o prazer é vazio? O próprio ato sexual é, por essência, uma comunicação silenciosa entre corpos que se reconhecem, se escolhem e, sim, se afetam. Mesmo nos encontros mais passageiros, há algo de escolha, e toda escolha é, no mínimo, uma intenção emocional.
Pra você ter uma ideia, o clímax, aquele momento de entrega plena, não é apenas fisiológico. O cérebro libera substâncias como a oxitocina, conhecida carinhosamente como um hormônio de vínculo, apego, cuidado… Enfim, esse hormônio não pergunta se estamos comprometidos ou não. Ele apenas atua. O corpo fala, mesmo quando a boca silencia. E quem acredita que isso pode acontecer sem sentimento algum está, no mínimo, anestesiado ou se enganando.
Mas mais grave ainda é perceber que a infidelidade não começa no ato, mas no pensamento. No momento em que se permite a presença de outro alguém no imaginário íntimo que deveria pertencer ao parceiro. Pensar é desejar. Desejar é, muitas vezes, trair primeiro por dentro.
Eu fico até indignado ao ver como tantos hoje defendem a ideia de uma traição “sem sentimento”, como se o corpo fosse só uma vasilha. Mas o que acontece quando essa traição resulta numa gravidez, numa DST, numa ruptura definitiva? O sentimento vem. Se não for amor, virá como culpa. Se não for culpa, será arrependimento. E se vir o arrependimento, sabe como o japonês lida com isso né? De arrependidos, a Floresta de Aokigahara já está cheio.
É impossível não admirar o Japão. Sua estética, sua disciplina, sua cultura de beleza e respeito silencioso. Mas também é impossível ignorar as fissuras: casamentos em declínio, natalidade em queda, jovens desistindo de se relacionar, crescimento alarmante de doenças sexualmente transmissíveis. O Japão vive uma crise afetiva e essa crise não é só dele. É do mundo.
Em um planeta onde se romantiza a liberdade sem compromisso e se ridiculariza a exclusividade como “prisão”, o amor vai ficando frágil, fragmentado, funcional. Mas amor não é função. Amor é vínculo. É a escolha repetida. É a responsabilidade sobre o outro quando ele confia em você mesmo quando você tem a chance de errar e não erra.
Estamos, aos poucos, nos acostumando a amar pela metade. A aceitar migalhas emocionais. A transformar o medo da rotina em permissão para o desrespeito. E com isso, deixamos de ensinar às próximas gerações o valor da presença, da lealdade, da confiança e do prazer que nasce quando há entrega de verdade.
E antes que alguém venha dizer que isso é moralismo e conservadorismo, eu gostaria de dizer que não é nada disso. É humanidade e sensibilidade.
A traição não fere só pelo ato. Fere pelo que revela: que o compromisso deixou de ser inteiro. Que alguém desistiu de manter viva a promessa silenciosa de não ferir. E isso, mais do que o corpo que se entrega a outro, é o que mais dói.
Amor sem sentimento não existe. E traição sem dor, tampouco. Podemos até fingir por um tempo, porém, mais cedo ou mais tarde, o corpo, o coração ou a consciência vão cobrar. Como já diria o deputado Kim Kataguiri uma vez: “Quem vende a alma ao demônio, aprende que o capeta cobra com juros e correção monetária.”
E talvez, quando esse dia chegar, seja tarde demais para recuperar aquilo que deixamos morrer: o vínculo sagrado de amar alguém por inteiro.